Projeto de Pesquisa – Memórias das lutas camponesas na Amazônia paraense: o acervo documental da comissão pastoral da terra (1975-2018)

Uma das mais significativas questões inseridas recentemente nas reflexões do campo científico arquivístico é a discussão da salvaguarda da memória social e as relações de poder dela emanadas (Cook, 2012, Cook, 2004, Cook; Schwartz, 2002). Durante muito tempo os arquivos foram entendidos como “guardiões” neutros e impessoais de memórias homogêneas, supostamente representativas de uma identidade coletiva. A partir da perspectiva da Arquivística pós-custodial, emergente em fins do século XX, os arquivos começaram a ser problematizados como ferramentas de hegemonia ou de resistência, recursos a serem apropriados/manipulados por disputas políticas e narrativas as mais diversas.

Nesse contexto, o caráter presumidamente “natural” do processo de formação de fundos documentais foi desnaturalizado em face de evidências, baseadas em técnicas da Diplomática, de que arquivos, em distintos contextos históricos, foram coligidos e frequentemente reconstruídos não apenas para conservar os registros de transações legais como também para servir a propósitos históricos, religiosos, simbólicos e/ou militares, envolvendo personagens e eventos considerados merecedores de celebração ou de memorialização (COOK, 2012).

A dimensão do poder dos arquivos sobre a construção do conhecimento histórico, na formação de identidades e de memórias bem como na produção de silêncios e esquecimentos é explicitada na não inclusão sistemática de diversos segmentos sociais como mulheres, povos indígenas, comunidades quilombolas, camponeses, homossexuais, minorias étnicas, entre outros, nos instrumentos e instituições de memória documental da sociedade. No último quartel do século XX, especialmente a partir do contexto brasileiro de resistência à ditadura civil-militar, assistiu-se ao desenvolvimento de experiências de formação de acervos por organizações da sociedade civil representativas de grupos historicamente “marginalizados pelo empreendimento arquivístico” (COOK, 1998).

A concepção do acervo documental da Comissão Pastoral da Terra (CPT) emerge nessa conjuntura. Fundada em junho de 1975, no âmbito da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a instituição surgiu como “resposta à grave situação vivida pelos trabalhadores rurais, posseiros e peões, sobretudo na Amazônia, explorados em seu trabalho, submetidos a condições análogas ao trabalho escravo e expulsos das terras que ocupavam” (CPT, 2018). A realidade que motivou a criação da CPT refletia o acompanhamento das contradições e antagonismos que marcaram as ações governamentais planejadas para a região amazônica pelos governos civis-militares, especialmente no que se refere à ocupação das terras num processo iniciado na década de 1960 e intensificado nas décadas seguintes.

O desconhecimento da região e de seus centenários ocupantes e a ausência de democracia provocou superposições de ocupação e posse, gerando graves ocorrências de conflitos entre os antigos ocupantes e os recém-chegados, fossem estes empresários do centro-sul e sudeste do país ou famílias “sem terra” do Nordeste. Os embates políticos e jurídicos resultantes desse processo foram marcados sobretudo pela violência contra camponeses, posseiros, peões e indígenas. A instalação de grandes obras de infraestrutura como rodovias, hidrelétricas, projetos de mineração e serrarias ampliou a ação repressora de agentes públicos e privados sobre aqueles grupos, implicando em graves violações de direitos, em especial no que concerne ao direito a terra, culminando em expulsões, ameaças, prisões e assassinatos.

Por outro lado, engendrou ações de resistência e de múltiplas formas de luta que foram apoiadas e documentadas por religiosos e leigos atuantes junto a CPT. Segundo avaliações expressas em documentos da Igreja, por ter uma “cobertura institucional”, a CPT propiciou a visibilidade política dos conflitos fundiários, passando a ser um canal sistemático de registros e denúncias envolvendo esta questão (CPT, 2006). Para reforçar a luta pelos direitos, o órgão criou um setor de documentação em sua sede em Goiânia, o Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno, registrando os conflitos envolvendo os homens e as mulheres do campo e a violência por eles sofrida. À medida que a CPT foi expandindo sua atuação pelo país com a criação de sedes regionais, estas gradativamente também foram constituindo seus arquivos, a exemplo do acervo documental produzido e custodiado pela CPT regional sediada em Belém, que há mais de quatro décadas vem documentando as lutas pela terra no Estado do Pará.

Com base na perspectiva arquivística pós-custodial, compreende-se o Arquivo da CPT Belém como um “lugar de memória” que se contrapõe à escrita hegemônica da história recente da Amazônia, baseada em documentos “oficiais” produzidos e custodiados na esfera de instituições estatais e empresariais, como Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), Banco da Amazônia (BASA), Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), Federação da Agricultura e Pecuária no Pará (FAEPA), União Democrática Ruralista (UDR), Tribunal de Justiça do Estado (TJE) entre outros. A documentação produzida por tais órgãos, no contexto do planejamento e execução do projeto político de colonização da Amazônia a partir da segunda metade do século XX, silenciou e silencia sobre as contradições históricas desse processo, bem como de seus trágicos impactos socioambientais sobre comunidades camponesas, indígenas e quilombolas ao mesmo tempo em que tem sido agente da invisibilização dessas populações.

Com efeito, conforme constatado em pesquisa recente por Batista (2016), os mapas produzidos a partir das pesquisas efetuadas no contexto do Projeto Radares da Amazônia (RADAM), em uma área de aproximadamente 4.600.000 km², ao indicar as melhores áreas aos interessados em “investir” na região, desconsideraram completamente a presença de populações de ocupação antiga, especialmente indígenas, sequer mencionados. Tais mapas, que vieram a compor o acervo da SUDAM, dessocializavam o território, em consonância com a retórica governamental dos “espaços vazios” que orientou as chamadas políticas de integração e desenvolvimento da Amazônia.

As diversas representações cartográficas produzidas no âmbito das instituições planejadoras e executoras das políticas projetadas para a região apresentavam-na, pois, como um espaço fundamentalmente provedor de matérias primas a serem apropriadas e exploradas em escala, estático, uniforme e vazio, sem gente e sem história. É significativa, nesse sentido, a ausência dos seres humanos não apenas dos mapas produzidos no contexto do Projeto RADAM, mas de outros tipos documentais elaborados nas esferas estatais em geral (BATISTA, 2016). Por sua vez, a imensa massa documental custodiada no acervo da CPT Belém evidencia a existência e a resistência das populações amazônicas marginalizadas/invisibilizadas nos documentos oficiais. O acervo revela homens e mulheres protagonizando lutas coletivas por direitos: direito à terra invadida por grileiros armados, direito à água, represada para a construção de hidrelétricas, direito à liberdade, tolhida pelas condições de trabalho análogo à escravidão; direito a um meio ambiente sadio diante de impactos ambientais de toda ordem, destruidores de modos de vida preexistentes distintos da lógica econômica predatória de apropriação e uso dos recursos naturais norteadora das políticas governamentais executadas na Amazônia (BATISTA, 2016; CPT, 2016).

A seleção de determinados documentos, em detrimento de outros, para compor os acervos permanentes das instituições arquivísticas relaciona-se intrinsecamente ao empenho das sociedades em legar ao futuro determinadas imagens de si mesma (POLAK, 1989; LE GOFF, 1996). Porém, como enfatizado por Araújo; Santos (2007, p. 99), a determinação do que vai ser preservado e, portanto, lembrado, está vinculado àqueles que detêm o poder, pois “são eles que decidem quais narrativas deverão ser lembradas, preservadas e divulgadas”. Instituições arquivísticas oficiais, a exemplo dos denominados arquivos públicos, são resultado dos contextos sociais de sua produção, geralmente vinculados ao atendimento de demandas administrativas dos órgãos públicos e à necessidade de construção de identidades coletivas, especialmente a identidade nacional. Nesse sentido, não lhes convêm a salvaguarda de documentos de grupos opositores ao regime político vigente ou de minorias étnicas que porventura possam subverter a narrativa de uma identidade coletiva homogênea.

No que se refere à Amazônia, em particular, certamente aos agentes e agências de poder não interessa o registro de grupos sociais cujas demandas e ações ameaçam o status quo. Não por acaso, em diversas ocasiões, arquivos têm sido literalmente queimados na região, principalmente nas áreas mais conflagradas pelos conflitos fundiários no sul e sudeste do Pará. Embora o Acervo da CPT em Belém custodie uma rica documentação, alusiva a memória de mais de quatro décadas das lutas camponesas na/da Amazônia, o conhecimento de sua existência e, por conseguinte, o acesso a seus fundos documentais, ainda é bastante limitado, circunscrito a pesquisadores dos movimentos sociais, especialmente os ligados às Ciências Humanas.

Por outro lado, conforme constatado em visita técnica recentemente efetuada ao local junto a alunos do Curso de Arquivologia, embora siga uma lógica interna de organização, a gestão do acervo, desde sua concepção, não tem sido orientada por preceitos técnicos arquivísticos, que poderiam assegurar uma melhor organização, acesso e divulgação e, principalmente, preservação do acervo. Isto é motivado por uma série de razões, mas principalmente devido a carência de recursos humanos, materiais e financeiros.

Diante dessas considerações, este projeto se propõe a realizar uma análise histórico-arquivística do acervo documental da CPT/Belém, a partir da interpretação dos processos históricos que levaram ao seu surgimento e da identificação das especificidades dos documentos custodiados, dos critérios utilizados na sua organização, bem como das lacunas existentes na gestão documental, com o objetivo de subsidiar a elaboração de instrumentos de pesquisa para sistematização do acesso, consulta, divulgação e preservação do referido acervo.

Na terminologia arquivística, o instrumento de pesquisa é o meio – catálogo, índice, guia, inventário, listagem descritiva do acervo entre outros – que, por meio da descrição, permite a identificação, localização ou consulta a documentos ou a informações neles contidas, propiciando maior eficiência e racionalidade na gestão dos acervos. A descrição, segundo Berwanger e Leal (2008), é o elo de comunicação entre o documento e o usuário. Por certo, é a operação descritiva, norteadora dos instrumentos de pesquisa, que “conduzirá” o usuário até a documentação pertinente. Geofrey Yeo (2016) ressalta que, para além de garantir a acessibilidade, os produtos descritivos atuam como ferramentas de gestão de conjuntos documentais, constituindo verdadeiros inventários cuja função é impedir possíveis perdas ou extravios, cumprindo, ainda, um papel de preservação ao reduzirem o manuseio dos documentos originais.

O estudo será norteado pela perspectiva das discussões teórico-conceituais contemporâneas da Arquivística e das ciências sociais que têm procurado desvelar a relação entre interesses políticos e econômicos dominantes e a formação e gestão dos acervos (LE GOFF, 1996; POLLAK, 1989; COOK, 2012; HEDSTROM, 2015; ARAÚJO; SANTOS, 2007; PORTELLI, 2016). Ao problematizar o papel dos arquivos “oficiais” na produção de memórias, silêncios e esquecimentos, essa perspectiva analítica critica a ideia da objetividade do documento presente nas concepções arquivísticas e historiográficas tradicionais, enfatiza o caráter seletivo da memória e das narrativas (RICOEUR, 2007) bem como as tensões, conflitos e disputas que permeiam a formação de acervos. Ao debruçar-se sobre o acervo documental da CPT, que registra as experiências de “vidas arrancadas, sangradas, escravizadas” (Pe. Paulo Joanil, informação verbal, 2018), busca-se contribuir com a disseminação do conhecimento e a valorização dessas chamadas “memórias subterrâneas”, alusivas a diferentes grupos sociais historicamente excluídos e ocultados na história oficial do país em geral e da Amazônia, em particular.

Estado: Encerrado

Coordenadora: Iane Maria da Silva Batista